Dispepsia

fragmentos que dão novo sentido ao espaço urbano

. a arte de rua entrou na moda

Formas de arte de rua contemporânea como o estêncil e o sticker decoram as paredes externas e internas da boate Mary in Hell; grafites pintam o estacionamento da Confeitaria Momo; e, cada vez mais, campanhas publicitárias de marcas famosas nacionais e estrangeiras utilizam em suas peças gráficas e até logomarcas, técnicas relacionadas ao grafite. Primeiro, grafite, estêncil, sticker ou lambe-lambe eram técnicas artísticas feitas em espaços públicos por artistas de rua apenas como forma de expressão do cotidiano urbano e contestação da realidade política e econômica. Estavam desvinculadas do caráter de arte voltada para exposições e galerias. Hoje, este modelo de arte, denominado arte urbana, tem sido visto com outros olhos. Técnicas próprias ao grafite têm sido cada vez mais incorporadas pela publicidade, ou espaços públicos privados como boates, cafeterias e lojas de grife. Os motivos para tal apropriação são diversificados, e a retirada de seu contexto original – as ruas – têm gerado discussões entre aqueles que fazem arte urbana.

Rafael Avelar, sócio da boate Mary in Hell, que utiliza uma decoração baseada em técnicas de arte de rua desde o seu início, há dois anos, diz que a escolha desse estilo pela boate se encontra no fato deles simplesmente acharem estêncil, sticker, pichações e grafites coisas legais. “Para mim os melhores artistas de hoje são grafiteiros”, diz. Ele afirma que não houve qualquer influência na escolha dos artistas. A direção da casa deixou cada um criar de acordo com seu gosto e estilo. Se algo saiu um pouco mais agressivo, eles optaram por apagar.

Um outro exemplo da utilização da arte urbana em espaços públicos privados é o da Confeitaria Momo, localizada na Savassi. Segundo o gerente do lugar, Clásio Gontijo, a idéia partiu da proprietária do estabelecimento há mais ou menos dois meses. “Para ela, a Momo deve atrair diferentes públicos e mostrar que está aberta a todos. Deve ser um local de cabeça aberta e que promove a inclusão social”, diz. Porém, a confeitaria foi mais restrita em relação à boate. Os artistas foram escolhidos através de uma supervisora de artistas e foram obrigados a utilizar o Rei Momo, símbolo do espaço, em seus desenhos.

A visão dos artistas sobre essa tendência é mais crítica e vai um pouco mais além. O artista plástico Mário Leandro Rufino, um dos nomes mais importantes do cenário de arte de rua em Belo Horizonte, diz que a incorporação dessas formas artísticas pela publicidade se baseia no interesse dela por aquilo que é polêmico, o que faz atingir um maior número de pessoas. “Com certeza, a publicidade é muito influenciada pelo o que acontece nas ruas, está infestada de grafite em propagandas dos mais diversos produtos. É uma questão de aceitação”, afirma.

Quem partilha da mesma opinião de Mário é Luiz Navarro, integrante do coletivo Culundria Armada. Ele afirma que a arte de rua foi apropriada pela publicidade da mesma forma que toda a indústria cultural adapta práticas que funcionam bem no cotidiano cultural popular. “A publicidade logo captou a eficiência e a aceitação da arte de rua e claro que rapidamente quis se aproveitar disso de alguma forma. Fazendo isso, renova o seu discurso e conquista o público jovem, que vive com mais intensidade a arte de rua”, argumenta.

Porém, para Mário, na maioria das vezes, a arte urbana, ao sair de seu contexto original, é utilizada apenas comercialmente como forma de decoração, desprovida de qualquer conceito. A Momo, segundo ele, se encaixa nesse exemplo. Ele define como algo puramente auto-referente. “Ela falando de si mesma”, diz.

Luiz concorda com Mário em relação à perda de sentido quando a apropriação é apenas comercial. “Uma criação publicitária ao estilo de arte de rua não é arte de rua, é publicidade disfarçada de arte de rua. Perde o sentido original e influi diretamente na criação artística”, afirma. Ele ainda vai além, dizendo que a partir do momento que existe um outdoor disfarçado de grafite convivendo ao lado de um grafite, as duas linguagens entram em competição, o que faz com que a luta fique desleal. Quando chega a esse ponto, segundo ele, é hora de se reconstruir a linguagem. “É aí que surgem as vanguardas, aquelas linguagens que trazem o novo, o diferente. O grafite foi vanguarda, já não é mais. O sticker também já não é. Mas ainda estão bem na frente, estão tentando se renovar”, conclui Luiz.

(…)

A crescente apropriação da arte urbana por espaços privados gera polêmica também entre aqueles que estudam o espaço urbano como os freqüentadores desses lugares.

Juliana Pontes, co-organizadora do livro recém-lançado “Na Rua: Pós-grafite, Moda e Vestígios”, acredita que o uso da arte urbana em espaços privados é uma amostra da capacidade que a intervenção urbana tem de gerar tendências e de sua influência sobre mercados. Segundo ela, apenas a linguagem do grafite e do sticker são absorvidas pela mídia e pelo comércio, o que não gera deturpação do conceito de arte urbana. Além disso, segundo ela, esses modismos não acontecem só em Belo Horizonte

O antropólogo José Marcio Barros acredita que a arte urbana não perde seu sentido ao ser absorvida por estabelecimentos comerciais. “Casa e rua são polaridades que se complementam. A deturpação aconteceria na mudança de linguagem e mensagem, e nem tanto do meio”, afirma. Para ele, vivencia-se um processo de reconhecimento do valor artístico e cultural desta arte feita nas e para as ruas. No entanto, Juliana Pontes afirma que existe uma cultura entre os grafiteiros e pregadores de sticker de preservar os espaços privados e utilizar somente o mobiliário coletivo, ou seja, destinado para o uso público, onde teoricamente uma pessoa pode se manifestar desde que não seja de forma destrutiva.

No entanto, a utilização de espaços públicos como lugares manifestações artísticas é vista como uma forma de destruição entre alguns cidadãos belorizontinos. O administrador de empresas Marcelo Guadalupe, de 30 anos, acredita que conceder espaço para os artistas divulgarem os seus trabalhos, como fez a Confeitaria Momo, além de ser uma maneira de incentivar artistas contemporâneos, é também uma maneira de impedir a depredação de espaços privados e públicos. “Atitudes como essa ajudam a impedir atos de vandalismo e dão espaço àqueles que não tem onde expor seus trabalhos”.

A publicitária Raquel Duarte, de 26 anos, partilha da mesma visão de Marcelo em relação ao estímulo que iniciativas como essas dão aos artistas urbanos. Porém, ela discorda que sticker e grafite sejam atos destrutivos. “São atos destrutivos quando feitos em propriedades particulares, mas quando feitos em lugares abandonados ou nas paredes de um viaduto, por exemplo, ajudam a construir uma nova linguagem para a cidade”, explica.

O designer gráfico Bruno Marques de Oliveira, de 29 anos, analisa com cautela esse tipo de iniciativa. É preciso haver, segundo ele, uma adequação entre a arte e proposta do lugar, o que não acontece no caso da Momo. Bruno acredita que a impressão que se tem é que o estabelecimento está tentando atrair um público de baixa renda através de um discurso mais informal, porém, para ele, isso não o convence de forma suficiente quando se vê o alto preço dos pratos. “A sensação que eu tenho é que estão me dizendo ‘E aí? Tá vendo como eu sou agora? Sou descolada, gente fina, largadona… Pode chegar, que aqui não é lugar de playboy, não’. Até acho que faço parte da massa que a Momo quer amanteigar, mas eu conheço a história da confeitaria. Sei bem qual é a personalidade da marca deles. Grafitar a parede da garagem não me convence o suficiente pra acreditar nesse papo”, argumenta ele. Já o que acontece em boates como a Mary in Hell, ele enxerga de forma oposta. Bruno afirma que a casa é um lugar que ele esperava encontrar esse tipo de arte. Segundo Bruno, a questão da adequação é fundamental nas manifestações artísticas, levando-se em consideração que o que todo artista deseja é transmitir e provocar sensações. A relação que a gente cria com aquelas representações é muito mais importante. “Será que os artistas conseguem isso, mesmo quando sua arte é aplicada com o carimbo da Momo em cima?”, questiona ele.

PS.: Essa matéria foi realizada por mim, Marcelo e Gustavo para uma disciplina do curso de jornalismo no semestre passado. Teoricamente, ela deveria ter sido publicada no jornal Hoje em Dia , se foi ou não, eu não sei. E se alguém souber me avise… Mas, de qualquer forma, ela ilustra bem com a publicdade tem se apropriado de técnicas de arte próprias da rua e como as pessoas, sejam elas artistas, pesquisadores ou leigos enxergam essa apropriação…

E por falar nisso, só ontem é que pude observar quanto os grafites e pixações (sim, elas também estão presentes por lá) feitos na Momo estão em um contexto totalmente deslocado. E isso não é só pelo fato da arte urbana não se relacionar com um lugar puramente elitista, mas também pelo discurso vazio que aquelas ilustrações carregam consigo. São um amontoado de formas abstratas que em nem mesmo com a idéia do que é a confeitaria elas conseguem se relacionar.

Nas próximas postagens, publico algumas entrevistas na íntegra e mostro alguns dos trabalhos dos artistas que entrevistamos.

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